11.9.13

Txt: Cicatriz

Certo dia cansou-se. Sentada ali, quase sozinha, não fossem pelas duas pessoas que esperavam junto dela no ponto de ônibus, a menina sentiu estranhos ventos de mudança tocando-lhe o rosto. Sorriu então um novo sorriso. Era de liberdade, meio sorriso, meio loucura. Começou a sonhar. Soube que queria ter ares de cidade grande, entediava-se da vida pequena. Via a si mesma do lado de lá, dizendo palavras sofisticadas com lábios cheios e vermelhos. Escreveria romances, discorreria sobre as grandes questões da vida, debateria política, aprenderia línguas - coisa de gente muito sabida, ampliada, notável. Engrandecida, já ouvia o que todos eles diriam dela: Como é fina e versada essa menina que vem de longe. Partia agora, e sem demora seria finíssima cultíssima mulher.
 Não temia a vida nova, não senhor. Desejava-a e a abraçaria com força. Ali, naquele novo lugar, sumiriam as cicatrizes dos abraços não dados, dos beijos não dados, dos cigarros não fumados, dos vinhos não bebidos, e seria feliz, curvilínea, outra. E também queria um trabalho, pois sim, nunca fora de preguiça, ela queria também um trabalho de gente esclarecida, daqueles com ares de importância, em que se volta para casa na noite apenas para sentir a maciez dos lençóis limpinhos. Aos fins de semanas é que festejaria, e quando se cansasse da cidade, viajaria, pois agora todo o mundo era seu.
 Sim, o mundo era seu, todo, de ponta a ponta e de pronto, então deslizaria por terras como quem sabe da vida, conhecendo tudo o que se pode conhecer em vestido de renda e sed...
 Interrompeu-se.
 Não era ali seu ônibus que partia, já se afastando do meio fio?
 Se era!
 Ai miséria.
 Desciam os sonhos pelo ralo e ela levantava rápido e pronto, infeliz. Que pensariam os pais se chegasse atrasada? Como aguentaria o julgamento velado e as chacotas quase não ditas de suas amigas quando soubessem que "Aninha está de castigo por andar vadiando por aí"? Botou-se a correr o mais que podia, mas logo faltava-lhe o ar. Pediu tanto que, por bondade divina, o verde virou vermelho e o ônibus parou logo no sinal da próxima esquina. O motorista abrira a porta, indiferente. Tivesse ou não piedade da moça magricela e descomposta, ficaria ali entre os outros mais um tempo mesmo. Não era um ato de bondade. Era ausência de malvadeza. Ela embarcara e ia sentou se de pronto, discreta, sem cumprimentar ninguém, meio envergonhada, como quem tivesse pecado gravemente. Ai, o susto. O coração palpitava um pouco, misto do medo e esforço da corrida.
 Sentou. Descansou. Sumiu. Sua mente começava se acalmar aos poucos com a viagem longa e a visão da estrada. Concreto, prédio, árvore, rua, carro. Questionava: que faria agora dossonhos? Não sabia. Talvez fosse melhor guardar em segredo o vestígio daquele riso estranho, insistente e livre que agora cicatrizava. Só sabia que ficaria a marca.

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